Rasga-mortalha. *Pádua Marques.

Qualquer menino pequeno no meu tempo se pelava de medo e chorava muito e era capaz de se mijar todo só de ouvir gente grande falar de rasga-mortalha. E nem precisava ter visto de noite alguma coruja passando perto ou em cima de casa. Era motivo de procurar o fundo da rede e lá ficar até pegar no sono.

Gente grande era gente de se incomodar com tudo, fosse um malfeito, uma birra. Menino não queria ir pra escola, respondia mal à mãe, ao pai, à madrinha, não acertava um recado fora de casa, andasse descalço, não quisesse tomar banho, escovar os dentes, roubasse ou quebrasse um brinquedo de um irmão ou colega, quisesse ficar ouvindo conversa de gente grande, era motivo de se falar que a rasga-mortalha vinha pegar.

Na minha rua, a James Clark no bairro de Fátima, reduto dos trabalhadores da Estrada de Ferro, que eu só depois de crescido é que fiquei sabendo havia sido um inglês muito rico e que descobriu a utilidade da cera de carnaúba, era à noite feito um breu, de tamanha que era escuridão. Coisa de meter medo em menino. E a rasga-mortalha era esse animal que ajudava a nos espantar da sala e procurar a rede.

E a gente de casa e os de fora contavam coisas compridas e assombrosas sobre as rasga-mortalhas. Diziam que elas eram muito feias, que eram de olhos bem arregalados, de bico curvo e forte e que carregavam meninos, furavam barrigas daqueles que comiam barro ou chupavam o dedo, os que não obedeciam aos pais e não tomavam a bênção aos padrinhos e não iam ao catecismo. E a gente ficava ali com medo e, mais que de repente o pé era um vento até a rede procurando um pano pra e embrulhar.

E a gente acreditava que aquele pio da coruja rasga-mortalha quando ela cortava o céu, coisa contada pelos mais velhos, era sinal de que alguém haveria de morrer. Era um grito horrível e que lembrava uma velha a rasgar panos de seda. E que era mais que motivo da gente menino feito nós, se esconder pra não ser visto e não passar a ser o escolhido da morte. Dessa forma era de meter medo até quando se ouvia um homem na rua assobiando.

Porque no meu tempo de menino os homens grandes assobiavam. Era uma senha, uma marca de presença. Fosse pra chamar a atenção de suas namoradas, que raro eram de meter a cara na porta da rua e atrás de conversa com colegas e vizinhos, fosse pra numa coisa de, entrar na rua de casa avisar a mulher e os filhos. E até mesmo solitários e na noite escura, criarem coragem ou meter medo nos malfazejos e inimigos.

No meu tempo de menino os homens assobiavam músicas que falavam de amores, traições, desgraças, riquezas e infortúnios, das guerras, dos encontros e dos desencontros, das saudades. E aqueles assobios longos e às vezes tristes eram tirados por nós meninos já dentro das redes, como coisas de almas penadas, assim como as rasga-mortalhas, que andavam pela noite procurando um de nós ainda acordado pra atormentar. Por isso era que a gente tinha que rezar antes de dormir.

Só depois de muitos anos e já nos bancos de escolas as nossas professoras vieram num dia de junho nos dizer que as rasga-mortalhas não eram de fazer mal nenhum. Que aquele dito em casa pela gente grande era invenção pra nos fazer dormir. Que a rasga-mortalha era uma ave da noite e que por sinal comia os ratos que infestavam o quintal da velha Meri, que morava sozinha e sovinava as mangas caídas no imenso quintal. Do livro “O menino”, a ser lançado em 2026. Pádua Marques, da Academia Parnaibana de Letras.

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Pádua Marques

Jornalista, cronista, contista, romancista e ecologista.

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